sábado, 9 de julho de 2011

A Grande Sorte

O azar lhe acompanhou desde o nascimento. Porciliano não deu sorte de nascer com a cara do vizinho e, mesmo com a ilibada reputação de sua mãe, foi posto para fora de casa pelo pai. Adotado por um casal de idosos, ficou órfão pela segunda vez ainda na infância. No tempo de escola, já apelidado de Uruca e pé-de-gelo, aconteciam coisas estranhas, como o sumiço de suas provas. Nesta época, a instituição em que estudou não ganhou uma única medalha nos Jogos Estudantis, mesmo sendo a que mais investia.
Se a sorte não lhe acompanhava, era competente no futebol e inteligente para o aprendizado. O adolescente Porciliano, ótimo goleiro, tentou ser jogador profissional, mas sem sorte nesta posição seria impossível. Havia sempre um chute para gol em que uma perna adversária ou de seu próprio time desviava a trajetória da bola e mandava-a para o outro canto da baliza. Quando isto não acontecia, o famoso montinho artilheiro tratava de mudar a direção da pelota. Muito bem preparado, tentou vestibular para medicina, mas ficou como primeiro na lista de espera. Como todos se matricularam, não conseguiu a vaga.
Assim era a vida de Porciliano. Até quando tentou mudar de nome, faltou-lhe sorte. O juiz não concedeu o pedido alegando que isto não lhe causaria qualquer prejuízo material e emocional. Aliás, deveria se sentir honrado em carregar a fusão dos nomes da mãe, Porcina, e do pai, Emiliano. A decisão foi irrefutável. Afinal de contas, o magistrado chamava-se Olindano, filho de Olinda e Herculano.
Porciliano também tinha bons amigos. Um deles, Valfrido, estava convencido de que poderia ajudá-lo a espantar a maré ruim. Para isso, teve a infeliz idéia de encher o azarado de figas, ferraduras com sete furos e trevos de quatro folhas. Não deu certo. Tentou ir mais fundo, procurando uma mandingueira famosa no bairro, mas as coisas só pioravam.
Poucas pessoas se aproximavam dele. Diziam que chegar perto de Porciliano atraia seu azar. Aliás, certa vez, um gato preto olhou para ele e, ao passar debaixo de uma escada, foi atingido pela mesma, que caíra. Morreu na hora, mesmo ainda não tendo perdido uma única vida anteriormente. Ficou sem as sete de uma só vez.
Valfrido seguia com sua missão de tornar Porciliano um sortudo ou, ao menos, alguém normal. Planejou uma tentativa convidando o amigo para assistir a partida entre o líder do campeonato, seu time de coração, e o último colocado, que não havia marcado um único gol, em vinte partidas, e conquistado sequer um ponto. Prudente, ainda gastou um bom dinheiro para que o juiz expulsasse dois defensores do adversário. Resultado: deu zebra. Dois a zero para a equipe lanterninha da competição, mesmo com dois atletas a menos.
Em uma outra vez, Porciliano foi convidado por Valfrido para ir ao jóquei, que sabia que naquela noite apenas um cavalo estava inscrito para correr o sétimo páreo. Até a sexta carreira, o amigo faturou uma boa grana. Pedia para o azarado apostar em dez cavalos em cada corrida e, sem que o colega soubesse, colocava seu dinheiro nas patas dos que sobravam. Ganhou um bom dinheiro. Mas, no momento esperado, lá estava o animal disparando sozinho pela reta final até que ... Caiu sozinho e não cruzou a linha de chegada. Quebrara a perna.
Sem esperanças, Valfrido resolveu dividir com o amigo uma aposta numa loteria milionária. Escolheram os números e ficaram esperando o resultado. Na verdade, não acreditavam que ganhariam, mas a sorte começou a sorrir para Porciliano. Eles ganharam um caminhão de dinheiro. Entretanto, a dupla cometeu um erro. O bilhete ficou guardado no bolso da calça de Porciliano, que, ao sair da lotérica, pegou uma chuva torrencial. O comprovante, simplesmente, se desfez.
Até mesmo um ditado popular Porciliano contrariou: azar no jogo, sorte no amor. Ele se casara com Jurema, que também fora adotada na infância. Ao contrário do azarado, contudo, ela tinha duas mães, pois a natural a procurá-la na adolescência. Resultado: o pobre do marido tinha duas sogras.
A vida de Porciliano continuou sendo uma sequência de azares, até que, acompanhado de Valfrido, sofreu um terrível acidente de carro. O amigo sobreviveu por milagre. E ele, depois de ouvir o estrondo da batida, viu uma forte luz branca e uma pacífica fila de pessoas vestidas de um azul bem claro, onde entrou. Todos estavam calados, e o azarado intrigado esperava ser atendido pelo homem de barba.
Ao chegar a sua vez, ouviu:
– Seja bem-vindo, seu Valfrido. Sou São Pedro e vim recepcioná-lo.
– Valfrido é o meu amigo. Sou Porciliano.
– Porciliano? Caramba, que azar, trouxemos a pessoa errada. Desculpe-nos.
O azarado perguntou:
– Onde estou?
– Você morreu. Está no céu.
– Urruuuuuuuuuuuuu!!!!!!!!!!!!!!!!!
Porciliano saiu comemorando entre as nuvens e voltou para dar um beijo em São Pedro, que afirmou:
– Nunca vi alguém ficar tão feliz por morrer por engano.
– É que do jeito que vivi sem sorte. Estava arriscado eu ser mandado por equívoco para o inferno.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Uma Mulher Quase Perfeita

Paulão era o cara. Pegava geral. Não havia uma mulher desejada no bairro que o Dom Juan Suburbano não houvesse levado para a cama. Sua fama espalhou-se pela região e facilitou suas investidas. As meninas sonhavam serem cobiçadas por ele, que, corria a boca miúda, nunca falhava. Já os homens viviam em sua cola para ver se sobrava alguma amiga do alvo da noite. Ele sempre dava o tiro certo.
Naquela sexta não era diferente. O barzinho mais bem frequentado do bairro estava lotado de mulheres bonitas e de homens em busca de uma companhia feminina. Paulão chegou mirando cada mulher no point. A maioria já havia estado com ele. O Dom Juan Suburbano buscava algo novo para aquela noite.
De repente, eis que surge, chamando a atenção de todos, a estonteante Claudinha. Ela estava de volta ao bairro depois de 15 anos morando em outro estado. Saíra da vizinhança com 12 aninhos e ninguém poderia imaginar que se transformaria num autêntico avião. Era o patinho feio entre as meninas na infância. Hoje, contudo, despertava fortemente o desejo masculino. Estava com 1,75m, usava cabelos loiríssimos e possuía um corpo de dar inveja às outras mulheres, com cinturinha fina, seios e bundas na medida certa.
Junto a Claudinha, um verdadeiro séquito de mulheres, todas com a intenção de conseguir um namorado com a amizade da nova rainha do pedaço. Com Paulão e sua trupe, não era diferente. O Dom Juan Suburbano logo mirou na musa, que retribuiu com um sorriso maldoso e muito mal (ou bem?) intencionado. Não levou muito tempo para estarem relembrando os tempos de infância. Apenas um pretexto para um papo mais adulto, cheio de elogios, galanteador e que os levou para um lugar mais reservado e depois rumo ao motel.
Os beijos ardentes só cessaram ao entrarem na mais espetacular suíte do estabelecimento. Afinal de contas, pensou Paulão, Claudinha fazia jus àquele esforço financeiro maior.
Se afastando dele, a musa falou:
– Tenho muitas surpresas para você –, e dirigiu-se para o banheiro.
Despindo-se, Paulão foi para a cama king size. Nervoso, espera a entrada triunfal da musa, revelando suas cobiçadas curvas.
A porta abre-se lentamente e ...:
– Quem é você? – grita Paulão.
– Como assim, tesão? Está com amnésia ou a cama lhe tirou o desejo –, respondeu Claudinha.
– Mas você não é loira?
– Se preferir, coloco a peruca de novo.
– Tudo bem, mas e sua cinturinha fina. Onde foi parar?
– Toda mulher precisa da ajudinha de uma cinta, né?
Sem graça, Paulão concorda:
– É verdade, mas aqueles seios volumosos e aquela bunda redondinha?
– Já ouviu falar em sutiãs e calcinhas com enchimento? - retrucou a ex-musa do Dom Juan Suburbano.
– E aquele sorriso lindo, branquinho?
– Também posso recolocá-lo. Está ali no copo em cima da pia.
O quadro era pavoroso para os sonhos libidinosos de Paulão, mas ele resolveu tentar. Mas ficou só na tentativa. Pela primeira vez na vida, o garanhão falhou.
No dia seguinte, Paulão foi para mais uma balada como se nada acontecera, mas ele não esperava o que estaria por vir. Homens e mulheres evitaram falar com o todo poderoso da conquista. E mais, nos grupinhos, percebeu comentários e risinhos. Achou aquilo tudo muito estranho, olhou para Claudinha, que já era alvo de todos os olhares e da cobiça masculina, e dirigiu-se ao balcão do bar, pedindo uma cerveja.
Marcos, este sim um amigo, aproximou-se e consolou-o:
– Não se desespere, amigo. Acontece com qualquer um. Nada que uma outra noite não resolva.
– Desesperar? Não há motivo. Só não estou entendendo porque todos estão afastados.
– Todo mundo já sabe. Mas fique tranqüilo. Somos humanos. Falhamos mesmo.
Paulão olhou para o amigo e perguntou:
– Você conseguiria? A cena foi tenebrosa, nunca sai com uma baranga tão grande, nem bêbado.
Marcos sorriu para o amigo e aconselhou:
– Sei da sua revolta, mas não ajuda nada negar o óbvio. Diante de mulheres maravilhosas, ficamos tão ansiosos que podemos falhar.
– Marcos, você não entendeu. Aquela estampa toda é só fachada. Ela não é loira, usa peruca, está apertada numa cinta, veste sutiã e calcinha com enchimento e não tem um dente na boca.
– É melhor parar, Paulão. Quem acreditaria nesta sua história? Nem eu que sou seu melhor amigo.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Domingo de marchas

Juju e Pedrão curtiam o luar do sábado e planejavam o próximo programa.
– Que tal passearmos amanhã na praia, amor? – sugeriu a sempre comportada mulher.
Pedrão tentou se esquivar da sugestão.
– Estamos no inverno. Está frio.
– Mas todo mundo está dizendo que as manhãs na orla são quentíssimas. Todo domingo tem uma passeata divertida, uma marcha, como dizem agora. Esta semana foi uma dos machões. Reivindicaram poder cuspir no chão, arrotar em público e colar meleca debaixo das mesas sem qualquer censura.
– Já vi algumas dessas pelo jornal –, comentou Pedrão.
– Então, vamos ver como é ao vivo. Será divertido.
De tanto insistir, Juju convenceu o novo namorado. E, no dia seguinte, ela e Pedrão desciam do ônibus bem próximo ao calçadão, logo avistando vários grupos que iam em direções diferentes.
Já na orla, Juju viu um grupo que vinha em sentido contrário em altíssima velocidade e comentou com seu amado:
– Olha aqueles rapazes. São todos negros, devem estar protestando contra o racismo. Mas poderiam ir mais devagar, assim ninguém consegue acompanhá-los.
Pedrão explicou:
– Eles não estão fazendo passeata. São competidores de uma maratona.
– Mas só este grupinho se inscreveu? – perguntou Juju.
– Não. Estes são os quenianos. Daqui a meia-hora os outros vão passar.
Juju olhou em outra direção.
– Mas aqueles ali estão devagar, devem estar lutando por algo. Acho que são os papais noéis da cidade, estão todos de vermelho. Devem estar lutando para poder usar roupas mais leves.
– Juju, aqueles são os bombeiros. Ganham uma mixaria.
– Legal, eu apóio. Vamos segui-los.
O casal seguiu os bombeiros e seus simpatizantes, bradando gritos de guerra, balançando bandeiras ... se divertindo com os muitos personagens que acompanhava o protesto.
De repente, em sentido contrário, os bombeiros cruzam com uma outra marcha. Encantada com o astral despojado do outro grupo, Juju convence Pedrão a ir com eles. Havia muitas figuras, como um sósia do Bob Marley. Uma densa fumaça que acompanhava a passeata, contudo, impedia que muitos destes personagens fossem vistos. Aliás, o grupo queria justamente sair de onde se escondia.
Os manifestantes daquela passeata, literalmente, eram o maior barato, tinham um ótimo astral, mas Juju queria participar de outras marchas. O menu estava recheado. Havia protesto para tudo, até um grupo que preferiu ficar na pracinha próxima jogando dominó. Eram os aposentados lutando pelo direito de permanecer na esquina, de pijama, batendo papo, sem serem importunados pelos filhos. Aliás, apenas um participante, o único novinho, prosseguiu na manifestação. Como mentor e tesoureiro da turma, precisava justificar o altíssimo gasto com a iniciativa, embora só trouxesse nas mãos um cartaz feito com cabo de vassoura e cartolina.
No vai-e-vem de manifestantes, Juju encontrou Jefinho, seu ex-namorado.
– Você por aqui? Veio curtir o domingo? – perguntou Juju.
– Na verdade, vim lutar por meus direitos. Qual a sua causa? – disse Jefinho.
– Eu e o Pedrão viemos apenas nos divertir. Todo mundo comentava que a manhã de domingo aqui era bastante animada.
– O Pedrão vir aqui para se divertir? Eu marquei de me encontrar com ele.
– Você conhece o Pedrão? – indagou Juju.
– Claro. Aliás – pegando Pedrão pelo braço –, vamos, amor. A marcha pela legalização do casamento gay está começando.
E os dois saíram de mãos dadas pelo calçadão.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Sigilo profissional

Esmeralda estava a cada dia mais ressabiada. Havia três anos que Armando, seu marido, fora demitido da empresa que passara 20 anos de sua vida profissional. Tentou por mais dois uma recolocação no mercado de trabalho, mas não obteve sucesso. Nos últimos 12 meses, contudo, voltou a trabalhar e conseguiu aumentar significativamente seu patrimônio. Comprou um carro 0 Km, reformou a casa e mudou toda a mobília. Agora, andava falando em passar uma temporada na Europa.
Todo o progresso profissional de Armando afligia Esmeralda. Ele nunca falara sobre seu novo emprego. Só repetia sempre que o sigilo era fundamental, até mesmo na família, e pedia a esposa um voto de confiança. Como ela acreditava no marido, que nunca a decepcionara, concordava.
Nas últimas semanas, contudo, Esmeralda estava inquieta com a situação, precisava desvendar aquele mistério, mas não queria magoar o marido. Chegou a pensar que pudera ser algo ilegal. Entretanto, descartou a possibilidade ante a sempre correta conduta de Armando. Sua consciência vagava por milhares de possibilidades e seu coração apertava-se a cada dia mais.
Precisava resolver a situação. Tirar a dúvida. Decidiu investigar com cuidado para saber o que Armando fazia. Não iria falar nada com ele. Queria apenas aquietar seu coração. Para desvendar o mistério, foi a uma boa livraria e comprou alguns bons livros de investigação. Era preciso preparar-se para não dar nenhuma mancada e ser descoberta.
Naquela manhã, Armando saiu de casa rumo ao misterioso trabalho sem saber o que Esmeralda planejava. Ela foi junto, alegando que iria no supermercado da esquina. Um beijo no portão e a esposa apressou-se para pegar o carro alugado que havia deixado na esquina. O marido não percebeu. Pôs a peruca loira e começou a discreta perseguição.
No centro da cidade, o marido diminuiu a velocidade, ligou a seta e entrou, para desespero da esposa, num motel de quinta categoria. As lágrimas correram do rosto de Esmeralda. Não poderia ser verdade. Queria saber qual era o emprego do amado e estava prestes a descobrir uma traição. Mas uma interrogação logo pairou sobre sua cabeça: quem era a amante?
Estacionou o carro, sentou-se em um banco na praça em frente e passou a observar, procurando qual mulher entraria sozinha no motel. Mas nas primeiras duas horas, apenas um casal ousou freqüentar a verdadeira espelunca, que, aliás, abrigara o mendigo que deixou o recinto minutos depois de Esmeralda começar sua observação.
Muitas horas se passaram e apenas mais dois casaizinhos entraram no motel. Armando também não saiu de lá e, numa conclusão precipitada, a esposa exclamou:
– Ele é empregado ou o dono do lugar.
Mas logo caiu na real:
– Não é. Com uma freqüência tão baixa, não teríamos nem a metade do luxo que desfrutamos hoje.
Não havia mais tempo. Esmeralda não poderia correr o risco de chegar em casa depois de Armando e resolveu, frustrada, voltar. Ao se levantar do banco, o mendigo que saíra do motel pela manhã lhe abordou. Ao levantar os olhos, parou no semblante do miserável. Quase não conseguiu dar-lhes algumas moedas, tal a paixão fulminante que tomou conta da dublê de detetive.
Com o olhar correspondido, Esmeralda foi caminhando para o carro vendo o mendigo lhe observar. O que estaria acontecendo com ela? Seria a frustração de ser traída? Ela também não sabia e, na volta para casa, experimentou uma mistura de raiva pelo que supunha descobrir e de arrebatamento por uma paixão estranha. Não conseguiu parar de pensar no olhar daquele pedinte, sobretudo porque fora correspondida. Havia ainda a sensação estranha de conhecer aqueles olhos.
Ao chegar em casa, Esmeralda foi logo para o banho. Era como se limpasse do pecado de cobiçar um homem que não conhecia e que sequer tinha condições higiênicas para tocá-la. No chuveiro, ouviu a chegada de Armando em casa e se preparou para encontrá-lo, sem saber o que faria.
Sem falar nada, Armando entrou no banheiro para uma demorada chuveirada. Ao voltar, encontrou Esmeralda sentada na cama e chorando. Ficou calado, vestiu a roupa e comentou:
– Não deveria ter acontecido assim, até porque eu estava pensando em lhe falar.
Esmeralda se surpreendeu. Achava que ele não a tinha visto. Perguntou?
– Quem é ela?
Armando não entendeu:
– Ela quem?
– Você entrou sozinho naquele motelzinho de quinta categoria, mas não a vi entrar.
– Não é o que você está pensando.
– Todo homem diz isto.
– Você não me reconheceu?
Diante da pergunta, Esmeralda entendeu a paixão pelo olhar do mendigo e a sensação de conhecer aqueles olhos. Num instante, sorriu:
– Era você. O mendigo era você.
– Sim. Este é meu novo emprego. Mendigo profissional. Nesta atividade, o segredo é imprescindível, até dos mais próximos. Mas não agüentava esconder esta situação de você por mais tempo. Até porque quero expandir meus negócios e acho que você pode ser uma ótima profissional. Ficou muito bem disfarçada.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Direito humano

A polícia encontrou o número 1 do tráfico de drogas na cidade. A casa de Trabucão estava cercada. Lá dentro, o bandido curtia suas mordomias sem nada saber, até que a lei entrou no aparente casebre.
– Perdeu, Trabucão! – Gritou Dr. Xavier, delegado conhecido por grandes prisões.
Sem nada entender, o bandido foi pego literalmente com as calças na mão. Ainda tentando colocar a bermuda, Trabucão pergunta ao chefe de sua segurança pessoal o que estava acontecendo.
– O que é isso Portuga?
O subalterno, levado pela orelha pelo inspetor Saraiva, responde:
– Os “homi” cercaram o morro há dois dias. Vieram com helicóptero, armamento pesadíssimo e até tanque de guerra. Não conseguimos evitar. Só não avisamos porque o senhor falou que não queria ser incomodado neste fim de semana.
– Vasculhem a casa! – Ordenou Dr. Xavier a sua equipe.
Logo, um grupo trouxe Fifi. Enrolada num lençol e com os longos e loiros cabelos molhados, a acompanhante de Trabucão chamou todas as atenções da polícia. Era linda. Tinha uma pele de seda, os olhos azuis, uma boca carnuda e um corpo que, mesmo coberto, revelavam seios siliconados e uma bunda avantajada.
Fifi despertou tanto a atenção que por muito pouco Trabucão e Portuga não deram no pé. O azar da dupla é que o inspetor Rosinha não se interessava pelos dotes da loira. O policial estava intrigado querendo saber se o Trabucão era de cano curto ou longo.
– Os bofes vão aonde? – Rosinha interrompeu a fuga da dupla.
Neste instante, chegam as equipes de televisão, e Trabucão logo reage, tentando esconder o rosto, nunca revelado antes:
– Tirem esses caras daqui.
– Tá querendo preservar a identidade, mané? – Vociferou inspetor Saraiva, pegando o bandido pelo queixo e mostrando em rede nacional.
– Pô, larga aí, tô querendo preservar minha integridade. Isto sim.
– Fica na tua. É melhor assim. O mundo todo tá vendo que pegamos você sem esculhachar.
Algemados, Trabucão e Portuga foram colocados na caçamba. Fifi, após vestir sua microssaia e seu top e pôr seu tamanco salto 18, sentou-se ao lado do Dr. Xavier, no banco de trás da viatura. Saraiva acelerou a viatura rumo à delegacia policial.
Do outro lado da cidade, Idalina, com lenço na cabeça e vassoura em punho, ainda estava atônita com o que vira na TV enquanto varria seu humilde cafôfo. Reagiu:
– Cachorro, salafrário, desgraçado ... – Vociferou, saindo de casa apressadamente.
Na sala do delegado, Trabucão, até então, encarando de frente cada agente da lei, amarelou ao ver a cena. Idalina foi derrubando cada policial até estourar o vidro divisor da sala do mandatário da delegacia. O bandidão ajoelhou-se e chorou:
– Perdão, Dadá!
Dr. Xavier perguntou:
– Saraiva, quem deixou esta senhora entrar aqui?
– Doutor, nem a Força Nacional conseguiu detê-la. – Respondeu o inspetor.
– Perdão, canalha! – Idalina estava furiosa e partiu para cima de Trabucão.
Ninguém foi capaz de parar a dona-de-casa.
Na apresentação do chefão do tráfico para a sociedade, todos ficaram surpresos. A polícia apresentou Trabucão com os dois braços quebrados, sentado numa cadeira de rodas, os olhos roxos e com 97 pontos só no rosto.
A imprensa logo perguntou:
– Foi esse cara mesmo que vocês prenderam. Ele é mesmo o Trabucão?
Sem graça, Dr. Xavier respondeu:
– É ele mesmo. Tivemos um contratempo. Está diferente, né?
Uma repórter exaltada:
– E os direitos humanos. Ele foi preso inteiro e está todo quebrado.
Dona Idalina, ou Dadá, entrou na história:
– Direitos humanos? E os meus direitos humanos? Aliás, você tem razão foi um direito humano. Este aqui.
Exibindo o braço, Dadá continuou:
– Um autêntico direito humano.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Um "vulcão" na esquina

A fumaça tomou conta do bairro. Na rua, carros colidiam, carroças caiam nos buracos e os vizinhos não conseguiam evitar os encontrões. Logo surgiram os primeiros boatos. Seria um incêndio? Uma nuvem baixa? Uma explosão na fábrica clandestina de talco? Um superfumacê? As especulações eram muitas. Até que seu Afrânio deu a explicação mais aceita pela comunidade, embora com alguma resistência inicial.
– Foi o vulcão.
– Que vulcão, seu Afrânio? Por aqui não há vulcões ativos –, argumentou dona Margarida, a moradora mais antiga da rua.
– Não é daqui, dona Margarida. Fica na Islândia. Está cobrindo o mundo todo de fumaça. Os aviões sequer podem decolar –, explicou Seu Afrânio.
Bartolomeu, o sabichão da localidade, meteu-se no assunto:
– Fica lá nas “Oropa”. Li num jornal que a fumaça pode chegar à lua. Os ETs estão desviando as rotas dos discos voadores para não passar perto da Terra.
– Então, a coisa é muito séria. Daqui a pouco começará a cair cinzas sobre nós. É a confirmação de que voltaremos ao pó –, constatou Baltazar, o pessimista do bairro.
– Vocês não estão enxergando? Para mim, não faz a menor diferença –, tripudiou Nezinho, o ceguinho da porta da igreja.
Enquanto o nervosismo se instalara, logo apareceram os aproveitadores de plantão. Januário, o camelô da esquina, tentava vender ventiladores portáteis à pilha pelo quádruplo do preço:
– Espalha toda fumaça em segundos. É o alívio para o seu pulmão –, gritava o ambulante:
Já Tenório, o velhinho saliente e bom de papo, tentava convencer Cidinha, a morena mais desejada do quarteirão.
– É menina, acho melhor a gente aproveitar o tempo que nos resta. Daqui a poucos minutos estaremos todos sufocados. Vamos curtir o pouco que nos resta da vida?
– Safado! – Catapouuuuuu!!!
Cidinha não perdeu o rebolado e acertou um direto no olho esquerdo de Tenório, que tentava em vão ver no espelho a gravidade da situação.
No meio da algazarra, do tumulto generalizado, surge como um raio o pequeno Joãozinho:
– Achei!
– Achou o que? Onde você estava, menino? – perguntou sua mãe.
– Achei vocês. No meio desta fumaça, não estava conseguindo voltar para casa.
– Mas de onde você veio? – quis saber a mãe.
– Lá da esquina. Olha como está gostoso? – O menino ofereceu um espetinho de carne para a mãe.
– Onde você arrumou isso, menino?
– Ué, na barraquinha do seu Toninho, o mais novo churrasquinho de gato do bairro. Afinal de contas, de onde a senhora acha que está vindo esta fumaça toda?

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O valentão da terceira idade

– Clotilde!
– Que foi, Garcia?
– Cadê a graxa de sapatos?
– Ahn!!! Deixe-me em paz. Eu e as crianças estamos vendo a polícia preparar a invasão do Complexo do Polonês. A televisão está registrando tudo. É o Tropa de Elite 3. E ao vivo!
A garotada completou:
– Vem vô, está o maior barato. Tem tanque de guerra, helicóptero, submarino e o escambau.
– Mas eu preciso da graxa.
– Para que? Qual o milagre que o fará engraxar os sapatos? Nunca fez nada para ninguém. Depois que a PM o reformou então! Não sai do sofá –, dedura Clotilde.
– Vou dar a minha contribuição. Vou me apresentar como voluntário nesta guerra contra o tráfico. Preciso engraxar meu coturno.
Diante da TV, Clotilde não se conteve, tendo uma crise de riso.
– Caraca, virou valentão? Você sempre foi um frouxo. Até para pedir minha mão em casamento tremia igual vara verde. Aliás, nunca conseguiu prender um bandido sequer. Agora, já com o pé na cova e 30 kg a mais, resolveu dar uma de valente?
– A sociedade precisa de mim. Quanto aos bandidos, eles tinham medo de mim e fugiam quando sabiam que eu estava na área.
– Lembra daquele cara que você perseguiu a vida toda e nunca conseguiu pegar?
– Ele sempre esteve armado até os dentes – retrucou Garcia.
– Armado até os dentes? Ele só tinha um florete, sofria de Mal de Parkinson e sequer tinha carro, fugia a cavalo.
– Disse bem, fugia.
– Sim, mas antes sempre conseguia pichar a letra Z na parede.
– E era só. Chamava-se Zarolha. Nunca conseguiu escrever o restante porque eu estava atento e chegava na hora.
– Devia ser analfabeto –, afirmou Clotilde.
Enquanto exaltava sua atuação, Garcia encontrou a graxa e começou a se preparar para a guerra. A farda saiu do armário, pôs a garrucha no coldre e adentrou triunfante à sala da casa.
Juquinha, o neto mais novo, não perdeu tempo:
– Maneiro, vô. Tenho um boneco que usa uma arma dessa.
Joãozinho, o mais velho, lembrou:
– Vi uma desta no museu.
Clotilde, incrédula, comparou:
– Os caras com fuzil, metralhadora, bazuca, granada e o caramba a quatro e você de garrucha. Acho que vou colocar meu vestido preto. E não se esqueça de, antes de ir para a guerra, passar no banco e fazer um seguro de vida em meu nome. Ficarei viúva.
– Vai agourar outro. Você ainda vai se orgulhar de mim. Vou lá no Polonês e trazer o UE pela orelha.
– É WE, Garcia. O nome do bandidão é Wellington Eduardo, WE e não UE.
– Este mesmo, Clotilde. Crianças, fiquem de olho na tela. Seu avô vai virar herói.
Pá, pá, pá, pá, tá, tá, tá, tá ...
– Meu Deus, é a terceira guerra mundial –, e Garcia sumiu em menos de um segundo.
As crianças perguntaram:
– Cadê o vovô?
Clotilde entregou:
– Vai chamar o avô de vocês lá no quarto, debaixo da cama. E diga ao herói que este barulho foi apenas a pipoca que coloquei no micro-ondas.